HISTÓRIAS DAS MINIPORTAS

Conto #33 Portas e Passagens.
Marina Toaldo

Colégio Integral de Curitiba - Paraná (2023)

*Este conto foi criado em um projeto realizado no Colégio Integral sob a coordenação da profa. Vanessa, inspirado nas MiniPortas de Maringá, e gentilmente cedido para publicação neste site.

No fundo do corredor, uma porta cinza com traços de ferrugem na emenda da maçaneta e nas dobradiças. A porta de ferro, desconfio, nunca foi aberta.

  Há três anos, frequento esse corredor. Apesar de possuir seis luminárias, apenas a última costuma funcionar, mal de universidade pública brasileira.

  À primeira vista, o setor de anatomia causa estranheza mais pelo cheiro de formol do que pela falta de iluminação. Andando pelo corredor nota-se o barulho das aulas, dos alunos, e dos professores. Portas abertas facilitam a ventilação, e convidam os atrasados a entrar.

  A primeira porta do lado da escada é o museu de anatomia, apesar dos corpos taxidermizados a impressão que dá é de algo mais exótico do que vivo. Prateleiras exibem ossos, crânios, e todas as outras estruturas humanas que um médico deve reconhecer.

  Na segunda sala fica o ossário, uma espécie de dispensa onde se guardam em caixas as diferentes estruturas ósseas do corpo humano. Há caixas para fêmures, carpos, metacarpos, rótulas, tíbias, crânios, mandíbulas e vértebras. Enfim, material necessário para as aulas de anatomia.

  As próximas três portas são salas de estudo, sendo que uma delas guarda os corpos que avaliamos.

  A descrição acima pode assustar as outras pessoas que nunca frequentaram o andar térreo do bloco de biológicas, mas para uma aluna de medicina, diz mais sobre a vida do que sobre a morte. Por exemplo, os corpos da sala de anatomia, todos os seis, carregam histórias, não só das suas vidas, mas de um país. Aqueles homens e mulheres estavam ali, pois eram entendidos pelo estado brasileiro como indigentes. Morreram, teoricamente, sem causas definidas, longe de casa e de suas famílias. Ninguém os procurou. Logo para o Estado, eram apenas corpos.

  De qualquer maneira, para mim, era inevitável pensar, ou pelo menos imaginar, quem eram aquelas pessoas. Foram felizes? Amados? Mães? Pais? Filhos? Não me parecia obra do destino aquele fim.

  De qualquer maneira, tinha a sensação de que a última porta, aquela que jamais vi aberta em três anos, guardava as respostas para as minhas dúvidas. 

  No último semestre, meu destino não foi diferente de muitos de meus colegas, peguei final em genética. Para mim, a anatomia me parecia muito mais fácil de compreender do que um aglomerado de células e proteínas que só era possível ver em velhos microscópios. Era quase como se pequenos universos aleatórios habitassem nossos corpos, movidos por uma energia desconhecida, produziam gente, doenças, curas e cores. Passei um mês enfiada na biblioteca tentando entender como vinte e três cromossomos podem fazer a guerra ou a paz celular.

  Na véspera da prova, nervosa com meu desempenho, fui a última a sair da biblioteca. Caminhando na direção da saída da universidade, percebo uma das janelas do bloco de biológicas entreaberta. Vou até lá, com o intuito de fechá-la, mas após olhar para dentro, percebo que a janela leva a uma das salas do setor de anato, não reconhecendo os materiais lá armazenados. Entre muitas estantes, poeira e teias de aranha, visualizo diversas caixas, não simples caixas, mas sim, arquivos. Movida pela curiosidade, com dificuldade, entro na pequena sala iluminada apenas pela pouca iluminação dos postes da rua e vou em direção aos tais arquivos.

  Ao me aproximar de uma das caixas, abro os arquivos que estavam lá guardados, me deparando com diversos nomes os quais não reconheço, o que confirmava que não se tratava dos alunos da faculdade. Informações como estatura, peso, sexo, e possível causa de morte, me levaram a compreender rapidamente do que se tratava. Eram os seis corpos das salas de anatomia, eram os donos dos ossos das caixas do ossário, eram os indigentes do estado.

  Enquanto estou absorta pelos documentos, uma porta se abre de repente. Por ela entra meu professor de anatomia comendo um salgadinho de pacote, ainda vestindo seu jaleco e com a máscara pendurada no queixo. Ele puxa uma cadeira velha, senta reclinando o corpo para trás e cruza as pernas sobre a mesa. Cochila um sono profundo, antes mesmo de levar o segundo punhado de salgadinhos à boca. Aproveito o momento e saio correndo pela porta, quando olho para trás, vejo que desvendei o quê a última porta guardava: a história que sobrou dos que não tinham história. É só uma porta, mas não posso deixar de pensar que portas trancam coisas, guardam segredos, são lugares de passagem. As portas do setor de anatomia bem ilustram isso.