HISTÓRIAS DAS MINIPORTAS

Conto #16 BEP - BEP - BEP – BEP
Ana Luiza Trapp

Colégio Integral de Curitiba - Paraná (2023)

*Este conto foi criado em um projeto realizado no Colégio Integral sob a coordenação da profa. Vanessa, inspirado nas MiniPortas de Maringá, e gentilmente cedido para publicação neste site.

Meus olhos se abrem sem saber ao certo para onde olhar. Estou perdida. Foco o teto branco, puro, imaculado, e não sinto nada além do meu corpo pesado. Olho ao redor e o BEP continua me lembrando que tenho que me mexer.

Meus pensamentos se organizam e ditam a ordem das coisas. Levantar, banheiro, café, academia, trabalho, coisas do trabalho, almoço, mais trabalho, casa, jantar, e finalmente cama, como em todos os dias da minha estúpida existência.

           Coloco meus pés no chão, o frio toca meus pés e vai direto para minha alma e transborda pelos meus olhos. Meus pensamentos gritam comigo, seja forte, pare de frescuras. E num assalto de coragem levanto e vou ao banheiro. A mulher que me olha tem o cabelo da moda, mechas lindas, boca artificialmente delineada, dentes tão brancos que parecem brilhar. Ela está apoiada na pia do banheiro me encarando, posso ver nos seus olhos o vazio infinito e me sinto pequena.

           Fecho os olhos com força. Eu não quero vê-la de verdade, eu não posso deixar o vazio vazar para fora dos olhos, então ligo o botão automático do meu cérebro e me concentro em lavar o rosto. Tomo uma água com limão que eu odeio, coloco uma roupa de ginástica ridiculamente colada e vou para a academia, encontrar pessoas que nem sei quem são e fazer exercícios que odeio mais ainda. Mas eu sorrio, é o que se espera que eu faça, é o que se espera que todos façam.

           Paro em frente a porta de saída e fico ali observando. Não gosto do que sinto. Tenho medo do que me espera. Não há expectativas. Não sei ao certo quanto tempo se passa até que consigo abrir a porta e sair. O ar úmido e o fedor de apatia do mundo me assalta e me contamina. Olho para trás, para minha porta, mas ela já não é mais tão grande quanto parecia. Não parece grande e forte o suficiente para me proteger. Respiro fundo, coloco um sorriso treinado no rosto, fones para sufocar meus pensamentos e corro para a academia. 

           Puxa, 1… 2… 3… Solta 1… 2… 3… Mecanicamente, repetidamente. Eu costumava gostar de fazer exercícios. Puxa, 1… 2… 3… Solta 1… 2… 3… Não sei quanto tempo passou. Uma moça com o mesmo cabelo, a mesma boca e roupas parecidas acena me chamando para outra sala. Eu sorrio, meu sorriso treinado e vou até lá. Subo em uma bicicleta estática, com luzes estroboscópicas piscando pela sala, um som ensurdecedor e pedalo. Como se minha vida dependesse disso. Eu gostava de fazer exercício. Alguém grita no meu ouvido que não estou fazendo o suficiente. Me sinto pequena, mas tento pedalar mais, ser mais. É o que se espera de mim. Penso que eu realmente gostava de fazer exercícios! Mais luzes, música e gritos. Estou suando, sinto algo escorrendo no rosto. Suor ou lágrima. Eu não sei. Mas não é o suficiente. Só penso quando foi que deixei de gostar de fazer exercícios?

Paro de pedalar e corro para o vestiário. Entro no chuveiro e sinto a água escorrendo pelo corpo. É uma boa sensação, mas não leva embora o embrulho no estômago, minha sensação de pequenez. Fico um tempo esperando a água me lavar por fora e por dentro. Ouço outras mulheres chegando, acordo do transe e saio para me vestir. Coloco uma saia justa e perfeitamente alinhada com a camisa e os saltos. Seco os cabelos e deixo eles muito bem alinhados também. Faço uma maquiagem que realça a casca que eu uso. Olho para o espelho e sorrio para a mulher triste, vazia e estranha que me olha de volta. Sorrio meu sorriso treinado e vou para o trabalho. É o que todos esperam.

Entro no prédio. Digital. Catraca. Elevador. Passo por várias mesas com pessoas tão absortas em seus computadores que se quer olham ao redor. A atmosfera é densa e sufocante, quase palpável. Sento no meu lugar. Enquanto o computador liga, olho para a minha planta murcha e seca ao lado do computador e me sinto um pouco como ela. Seca, vazia, pequena e sem vida. Eu gostava de trabalhar. Olho ao redor, por sobre o meu monitor e vejo pessoas tensas, com movimentos mecanizados. Será que gostam de trabalhar aqui? Alguém do outro lado da sala olha para mim no mesmo instante. Sorrisos treinados, cumprimentos e olhos no computador. Ligações, computador, análises e relatórios. Eu realmente gostava do meu trabalho.

Saio para o almoço com colegas do trabalho. Todas lindas. Todas com seus corpos malhados. Elas também vão para alguma academia. Peço uma pequena salada. É o que elas esperam de mim. Todas pedimos a mesma salada insossa. Eu espero isso delas também. Eu queria macarrão. Com queijo. Quando parei de comer macarrão com queijo? Elas mastigam a salada e sorriem seus sorrisos treinados. Olho para as suas bocas artificialmente preenchidas e contornadas que não param de falar. Deus, eu nem sei o que estão falando. Qual foi a última vez que realmente conversei com alguém? Que de fato ouvi minhas amigas? Elas são minhas amigas? Isso me deixou tão pequena. Eu não quero comer essa salada, ela desce se enroscando no nó que já está na minha garganta. Mas eu engulo e sorrio. É o que esperam de mim.

Volto para o trabalho. Reunião. Longa reunião. Números. Índices e muita insatisfação. Meu chefe grita. Eu me encolho por dentro. Uma colega não aguenta a pressão e sai da sala chorando. Coitada. Contam uma piada sexista. Eu me importava com isso. Meu chefe é condescendente. Os homens riem. Eu rio. Vejo o reflexo na vidraça da sala de reuniões. Sinto nojo da mulher que está rindo com eles. Me sinto fraca e pequena. Somos dispensados. Volto para minha mesa. Olho para o computador. Nem sei por onde começar. Quando deixei de gostar de estar aqui? Digita. Digita. Digita. Ouço alguém se despedir e percebo que está na hora de ir para casa.

Está ventando. Caminho até o taxi. Entro, passo o endereço e o taxista olha pelo espelho enquanto fala de forma indiscreta. Sinto raiva. Mas sorrio com meu belo sorriso treinado. Estamos parados em um congestionamento. Olho ao redor. Todos estão parados e parecem sufocados dentro dos seus próprios carros. Eu percebo as angústias deles. Será que eles percebem também? Por que todos estão tão angustiados? Nós não íamos mudar o mundo? O taxi para, eu pago e corro para casa.

Olho para minha porta e fico observando com a chave na mão. Lembrando. Pensando. Todas as vezes que fui somente a minha casca. Que não fui eu. Por que eu não sou eu? Todas as vezes que fui somente o sorriso treinado e a mulher vazia e estranha do espelho. Ela não ia gostar dessa porta. A porta é muito pequena para ela. Tão pequena. É só uma portinha. Mas eu não preciso sorrir meu sorriso treinado. Não preciso ser outra mulher. Porque eu também estou pequena. Muito pequena. Tão pequena.